domingo, 5 de novembro de 2017

Vão chorar a tua morte

Descrição para cegos: desenho digital de 3 pessoas, pintadas com cores diferentes. A primeira pessoa, da esquerda para a direita, é rosa, uma cor geralmente considerada feminina; a pessoa do meio está pintada com várias cores que variam do laranja ao verde; e a pessoa da direita é azul, uma cor geralmente considerada masculina. A pessoa do meio tem uma lágrima de sangue caindo de um dos olhos. O fundo está coberto com um pano preto.
Por Felipe Lima

Morri na última quinta-feira. Eu que já nasci morta porque não era azul nem rosa. Os obituários do meio-dia comentaram bem por alto. Enquanto me perguntava qual foto minha iriam colocar na TV, observei meu sangue mudando-se para outras veias: as rachaduras de uma calçada, no meio de uma praça qualquer. Ao redor, as estátuas de figuras importantes me assistiram, paradas, assim como as outras estátuas – as de carne e osso.

Não choraram minha morte. Não usaram foto nenhuma além das imagens do meu corpo mutilado no chão. Nada demais, somente alguns segundos e umas frases de efeito para segurar a audiência. Afinal, nunca fui notícia mesmo, eu morri todos os dias, mesmo enquanto ainda respirava, e ninguém ligava. Nunca choraram antes, não é agora que isso vai acontecer. Então me diz o que te incomoda.
Vão chorar a tua morte, a minha não. Tua família e teus amigos da faculdade vão estar lá. Eu não tenho nada disso, me enterraram sem cerimônia, como sempre enterraram em mim, como sempre cuspiram na minha cara, a minha casca. Vão chorar a tua morte. Tu que não faz ponto, tu para quem não olham torto porque não se veste como deveria. Vão chorar a morte de quem é homem macho mesmo e de quem é mulher de verdade. E que eu sou?
Vão chorar a tua morte, a minha não. Tu que é de Deus e pelos valores da família tradicional (“eu voto ‘sim’”). Tu que não é preta e da periferia, que não deu aos pais o desgosto de ser você mesma. Tu que não se pinta, nem dá pinta. E você se incomoda porque eu dou? Vão chorar a tua morte. Tu que não é o traveco, o prazer exótico dos hipócritas. Não vão chorar a minha morte, a tua sim. Então, por favor, me diz o que te incomoda?
Lembro-me quando minha colega de batente estava morrendo na sarjeta. Estava tentando juntar, com as mãos, o sangue espalhado pelo chão e pedindo que parassem. Filmaram tudo. Houve um certo barulho na época. Mas já esqueceram. Morri com todas elas: Anna Sophia, Dandara, Madona e todas as outras sem nome. Agora todas elas morreram comigo.

2 comentários:

  1. Poxa !! Arrasou!! Realmente Felipe , precisamos de um mundo com mais humanidade!! As pessoas não se importam mais umas com as outras! Parabéns pelo texto!

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    1. Obrigado, Keonara! Pois é, acho que o mundo precisa de exercício de empatia.

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