terça-feira, 2 de abril de 2019

Crítica de cinema: Uma Mulher Fantástica (2017), direção de Sebastián Lelio

Por Matheus Cirne

Descrição para cegos: cartaz do filme Uma Mulher fantástica, contendo a foto de perfil da atriz e protagonista Daniela Vega. Foto: Reprodução.


Uma Mulher Fantástica é uma produção chilena de 2017, dirigida por Sebastián Lelio e ganhadora do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2018. Traz a história de Marina Vidal (interpretada por Daniela Vega), uma jovem mulher trans que, de forma inesperada, se vê obrigada a lidar com a morte de Orlando (Francisco Reyes), seu companheiro, um homem hétero, cis e de meia-idade, que deixa para trás não somente Marina, mas uma ex-mulher e filhos.
Diante deste pano de fundo, a personagem, além de sentir o luto pela perda de seu namorado, passa a vivenciar uma sucessão de infortúnios. Estes, permeados de intolerância, pela ignorância e pelo preconceito, são motivados pelo fato de Marina ser uma mulher trans.
Neste sentido, a existência da personagem é negada por praticamente todos aqueles que pertencem ao universo do seu companheiro, que não a reconhecem como sua namorada. A presença de Marina passa a ser vista como um estorvo, um incômodo. Nega-se a ela o direito de continuar no apartamento de Orlando, de usar seu automóvel, de permanecer com sua cadela e, até mesmo, de comparecer ao seu velório.
O filme, nesta perspectiva, cumpre seu papel ao abordar de maneira extensa e cruel a realidade de muitas pessoas transexuais, que apenas pela sua existência, estão submetidas a uma série de situações de violência, sejam elas físicas ou psicológicas. Na trama, a violência sofrida por Marina é multifacetada, onipotente e institucionalizada, ocorrendo até mesmo no lugar em que deveria protegê-la, a polícia, quando por preconceito e falta de preparo, um policial insiste em chamá-la pelo seu nome de batismo, mesmo quando a mesma afirma se chamar Marina.
Ou ainda quando, ao levar Orlando ao hospital após seu mal súbito, tem que lidar com as perguntas inconvenientes e a desconfiança do médico do local, que passa a enxergá-la como suspeita da morte do namorado, além de não a reconhecer como mulher, nem como alguém que fazia parte da vida do homem que acabara de morrer.
Nota-se nestas cenas a constante necessidade não somente de Marina, mas das pessoas trans de provarem que existem, que estão aqui. Que podem e devem ocupar os mais variados espaços, de serem o que quiserem ser.
A fotografia atinge seu objetivo, ao fazer uso de cores mornas, sem vibração. Na maior parte do filme, utilizados tons de cinza, azuis escuros, verdes sóbrios, além do branco, produzindo uma paleta de cores que nos passa a ideia de luto, frieza, melancolia e angústia. Não obstante, nas cenas em que Marina está imersa em seus pensamentos, muitos deles no qual projeta uma realidade em que seu namorado ainda está vivo, percebemos o uso de cores mais fortes e vivas, como o vermelho, o roxo e o constante azul intenso, que transmitem fantasia, paixão e desejo.

Descrição para cegos: Marina, em um ambiente marcado por tons de cinza e branco, apresenta um olhar de desconfiança. Foto: Reprodução.
Marina é representada como uma mulher forte, independente e generosa, mas, ao mesmo tempo, desamparada e indefesa. São impiedosas as cenas em que a mesma não reage às violências verbais sofridas pela ex-mulher e pelo filho de seu falecido companheiro. Estes momentos de impotência não somente mostram a vulnerabilidade da personagem, mas abrem margem para se pensar a situação em que muitas pessoas trans estão inseridas na sociedade, sem apoio de amigos, da família e, em certas ocasiões, à margem do aparato protetor do Estado.
A feliz escolha de Daniela Vega para representar Marina Vidal fez toda a diferença. A atriz não somente se mostra competente nas cenas de maior densidade, mas também consegue se conectar perfeitamente com a narrativa e com sua personagem. É como se a Marina que está sendo vista nas telas fosse uma pessoa que existisse na nossa sociedade. E de fato existe. Quantas Marinas não existem no mundo real? Quantas não são submetidas a situações humilhantes e desumanas todos os dias?

Descrição para cegos: Marina, com roupas de festa, é fotografada sob jogo de luzes azuis. Foto: Reprodução.
Neste sentido, o diretor do filme atinge outro mérito, ao escalar uma atriz trans para viver uma personagem trans. Aliada à competência de Vega, este fator não somente aumenta a representatividade no universo do cinema, bem como torna a obra muito mais passível de identificação pelo público transexual.
Diante do exposto, Uma Mulher Fantástica adquire sua importância, não somente pela representatividade, que ganha ainda mais força devido à escassa produção cinematográfica do tema, mas por tudo que simboliza, reflete e retrata. Em toda sua delicadeza e crueldade, transmite com êxito as desventuras e angústias de Marina, uma mulher que nem ao menos teve o direito de viver o luto pela morte de seu namorado. Que a nossa sociedade esteja cada vez mais preparada para aceitar, respeitar, celebrar e conviver com as muitas Marinas, Dandaras, Laysas, Quellys e tantas outras mulheres fantásticas que sim, existem, têm voz e direitos.

Veja aqui o trailer:

Uma Mulher Fantástica - Trailer

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