Descrição para cegos: A imagem em preto e branco, feita em carvão pela artista plástica Gabriela Güllich, mostra a parte superior do rosto de um jovem, com um olhar de desesperança. |
Por Cephas Castro
Eu
talvez não tenha sido sincero contigo - nem comigo. Eu nem sempre sou sorrisos,
nem sempre tenho planos, nem sempre sou amigo - meu amigo. Então, é chegada a
hora da morte.
É,
resolvi desligar os aparelhos, eutanasiar a mim. Será possível?
A
lei não me interessa e talvez nem eu tenha interessado a ela. Então!
Eles
deveriam me proteger, te proteger. Mas não, criam espetáculos, armam as tendas
e distorcem debates importantes que poderiam ter me mantido vivo. Terá sido um
circo?
A
igreja não me representa. O religioso que de ti abusou minha alma também
despiu.
A
política não me representa. Eles se dizem defensores da boa e velha família
tradicional brasileira. Será ela: o pai, a (o) amante, a mãe e os filhos?
Quanta hipocrisia. Poderiam ter me mantido vivo.
A
escola não me representa. O bullying diário levou sonhos de criança e tornou
infernal as noites de sono. Prazer maior seria ter desistido e eu ainda estaria
vivo.
A
faculdade não me representa. O grupo de gênero finge ser aliado de nossas
questões mas não fazemos parte da elite que o compõe. O professor que sugere
propostas indecentes te cala, o segurança que te aborda por te ver beijando, te
amordaça. E você tenta seguir por esse caminho que insiste em te punir. Essa é
a jornada e que por muitos de vida é chamada. Nossa, que lindo!
O
trabalho não me representa. Só me sustenta.
Os
amigos não me representam. Todos me querem por perto, mas me apresentar à
família, ah, isso eu duvido.
Desistir
é pra mim um alívio. E não me entenda errado, ou me entenda, como queira, eu
apenas desisto. Desisto dos remédios. Estou farto das pílulas diárias que me
fazem acreditar na humanidade por completo. Cansado do conta-gotas que não
surte efeito. E a injeção de ânimo? Ah, essa é a razão da minha morte. Tentei,
eu por completo sei que tentei. Tentei me adequar, ser o "apenas mais um
na multidão", ser "normal”. Eu tentei! E nessas tentativas eu errei.
E como errei. Mas eu era criança, antes amada por meus pais e hoje julgado por
todos. Ano após ano eu fui cansando. E cansei.
Enxerguei
na morte de quem sou hoje a possibilidade de uma vida melhor. Me despir dos
medos de outrora, matar as inseguranças do passado e lutar. Estou morrendo para
viver. Mato o antigo eu um pouco a cada dia. Talvez matando-o aos poucos eu
adquira uma força maior para seguir.
E
aqui estou eu em mais um dia de morte - sem novidades. Os aparelhos estão sendo
desligados, a família ao meu redor e um silêncio absoluto. Em pensamento eu
suplico: Alguém grita: EU TE AMO?! - Talvez a essa parte eu deixasse vivo. Não,
vejo que estou só em meu mundo. As luzes começam a apagar, minhas pálpebras
ficam pesadas, minha respiração já falha. Ao lado da cama eu me vejo. Forte,
olhar altivo.
O
Eu vivo se aproxima da cama e me agradece. Achei tão lindo!
"Você
foi guerreiro e lutou até onde pôde, meu amigo. Estivemos juntos nessa
caminhada e sei o quanto sofreu, o quanto doeu. Você tão novo me tornou o homem
que sou hoje. Sei que está cansado e preciso seguir o destino."
Beijou
minha testa e soube naquele momento o quanto fui necessário em sua construção.
O tornei um guerreiro maior apenas com a minha injeção - de ânimo diário.
Aqui
encerro meu ciclo, amigo. Parto agora para me juntar aos milhares que estão com
hora marcada. É chegada a hora do alívio. Estaremos ligados eternamente pelas
memórias. Distante te observarei e pretendo usar a lâmpada que atingiu teu
rosto para te iluminar e teu caminho guiar.
Que
cada letra de nossa sigla (LGBT) se una como família e, política, escola,
faculdade, trabalho e amigos sirvam pra te fortalecer e te conceder um respiro.
Construa e seja amor por onde passar.
Obrigado
por me ter feito parte de te. Sigo agora meu caminho para te manter vivo. É
esse o meu destino!
Páginas
brancas carregadas em sua totalidade pela junção das cores do arco-íris, receberão
seu novo caminho.
Boa
sorte, amigo!
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