sexta-feira, 3 de maio de 2019

Resenha: Boy Erased: Uma Verdade Anulada (Filme)

Descrição para cegos: Em primeiro plano, à esquerda, está Nancy Conley, cabisbaixa; em segundo, Marshall Conley da mesma forma para, à direita. Ao fundo, entre o casal de atores que representam seus pais, está Jared Eamons olhando para frente, sério.

O filme, que causou polêmica ao não ser lançado nos cinemas brasileiros no início de 2019, ano este, marcado pela posse de um governo conservador e estreitamente ligado com a bancada religiosa, deixou várias dúvidas na comunidade LGBTQ+ sobre o que havia por trás dessa desistência. Entretanto, em resposta ao site B9, a Universal Pictures comunicou através de sua assessoria que o cancelamento se deu por questão única e exclusivamente financeira, decorrente do baixo arrecadamento de bilheterias nos EUA.  Após a discussão ter reverberado nas redes sociais, a empresa anunciou posteriormente o lançamento do filme no país em DVD, como uma resposta ao público. O lançamento do filme em home video ocorreu no último dia 17.

“Boy Erased: Uma Verdade Anulada” é baseado no livro homônimo, escrito por Garrard Conley, que utiliza um pseudônimo para relatar o que passou ao entrar em uma terapia religiosa que pretendia reverter a sua homossexualidade. O diretor, Joel Edgerton, intercala a terapia com os momentos que a precederam e levaram o jovem Jared Eamons (Lucas Hedges) a assumir sua sexualidade em casa. Para isso, Jared teve de enfrentar seu núcleo familiar extremamente religioso e conservador. Seu pai, Marshall Conley (Russel Crowe), é pastor em sua igreja e foi inicialmente apoiado pela sua esposa, Nancy Conley (Nicole Kidman), ao decidir levar o filho à terapia “Love in Action”, a qual descobriu consultando outros servos ministeriais. É apenas após várias reclamações de Jared que sua mãe se opõe à terapia e percebe o dano que causou ao seu filho por colocá-lo naquele espaço.  Por fim, Jared deixa a terapia e escreve sobre o que passou através de um artigo para o Times e um livro.


Descrição para cegos: No primeiro plano estão Nancy e Marshall, lado a lado, aparentemente contentes ao assistir um culto e ao fundo está Jared com rosto sério e ar sombrio.

O momento de autodescoberta de LGBTs com raízes na vida cristã é o foco do filme. O processo de autodescoberta por si só sempre traz uma natural insegurança frente à construção do homossexual no âmbito social como um todo, mas o recorte do grupo que frequenta os espaços de pregação que legitimam tais falas é único e acumula desafios particulares.

De antemão, gostaria de dizer que, com isso, não falo que todos os espaços cristãos são efetivamente homofóbicos. A comunidade LGBTQ+ já pode contar com locais de pregação e culto tidos como LGBTQ+ friendly em várias partes do mundo, inclusive, no Brasil. Tampouco digo que a LGBTfobia se restringe a espaços de culto cristão, visto que outras grandes religiões possuem líderes homofóbicos e transfóbicos.

Entretanto, o que não pode ser omitido é que atualmente esses cultos cristãos e intolerantes não estão nem ao menos próximos de terem sido extintos, principalmente aqui no Brasil, tendo em vista o rumo político que o país e a própria igreja evangélica vivem, concomitantemente, desde que se aliaram em um projeto de retrocesso dos direitos humanos. Dito isso, falarei aqui apenas sobre o recorte anteriormente mencionado de LGB’s que frequentam os numerosos espaços homofóbicos cristãos. A discussão da transfobia em ambientes religiosos, apesar de riquíssima, não é explorada no filme.

Esses espaços de culto usam a religião para afirmar a homossexualidade como algo moralmente desviante e, portanto, contemplam a homofobia como parte fundamental de seu conjunto de condutas necessárias para a salvação espiritual no pós-vida. Assim, a homossexualidade acaba sendo de fato vista lado a lado à atos ilícitos e criminosos como o uso de drogas proibidas, roubos ou até homicídios.


Aqueles LGBs que crescem nesses espaços, ao mesmo tempo em que desenvolvem desejos homossexuais tendem a encarar internamente o que lhes foi postulado enquanto conduta desviante como um defeito pessoal incompreensivelmente indissolúvel. É neste dilema que se encontra o jovem Jared Eamons de 19 anos, que incialmente se esforça em abnegar seus desejos em troca de uma aceitação, anterior à familiar, uma aceitação interna e complexa de ser alcançada ao se alimentar o repúdio à toda a comunidade LGBTQ+ como princípio moral no espaço cristão. 

O filme retrata esse momento de forma justa construindo um protagonista introspectivo e quase meditativo. Jared fala pouco e nitidamente não possui naturalidade na fala nem no comportamento. Seus gestos e expressões são comedidas e muitas vezes soam falsas. 

Descrição para cegos: Jared segura as grades que limitam o espaço da "terapia", enquanto observa fixamente o exterior.

Ao trazer a personagem quase como que aprisionada, o filme escrutina as barras de sua cela explorando os métodos de construção do comportamento sexual, tanto masculino quanto feminino, elencados pela terapia como passos básicos e iniciais no processo de reversão da homossexualidade. É nítido que ao tentar fingir um comportamento mais grosseiro e ligado ao conceito errôneo e popular de masculinidade, Jared se sente desconfortável.

“Fake it ‘til you make it” é o lema repetido em momentos dessa terapia na intenção de forçar um comportamento que nitidamente não pertence aquelas pessoas. Infelizmente, esse lema ecoa para muito além dos muros das terapias de “cura-gay” em uma sociedade onde muitas vezes LGBTQ+s são indicados a serem o que são de modo escondido, para que sejam merecedores da dignidade, a qual em realidade, é inerente a existência humana.

Descrição para cegos: Jared e Nancy estão sentados à cama. Jared está cabisbaixo e sua mãe o observa seriamente, com olhar preocupado, enquanto segura sua mão.

A aceitação familiar é discutida de modo mais aberto e óbvio, mas ainda sim muito interessante. Visualizar a série de ameaças que estão ligadas a esse tipo de aceitação me parece a melhor abordagem que o filme possui ao denunciar momentos em que o amor familiar é sugerido como moeda de troca para se obter a heterossexualidade do filho.

O papel da família, tanto no momento da autodescoberta quanto em sua revelação ao mundo, é extremamente influente no porvir da vida de cada LGBTQ+ e isso pode ser resgatado no filme através não só da libertação que Jared aparenta ao ser apoiado por sua mãe.

Histórias paralelas a sua no “Love in Action”, também mostram o outro lado da moeda. Dentre elas, a de Cameron (Britton Sear) é a mais marcante. O jovem é agredido fisicamente com bíblias e tapas enquanto é colocado em uma situação de humilhação pública, tanto pelos funcionários da terapia, quanto por seus familiares, no intuito de que desistisse de sua condição sexual. Até mesmo crianças são estimuladas a agredi-lo. Por fim, algum tempo depois Cameron comete suicídio.

Descrição para cegos: Um dos orientadores da terapia está em pé e aponta um caixão enquanto toca no ombro de Cameron. Ele o encara indicando que será esse o futuro de sua alma se continuar sendo homossexual. Cameron está sentado, cabisbaixo e visivelmente triste, com os braços entre as pernas. 
Apesar de tratar uma dura realidade ao contar experiências tão recentes e atuais como a de Cameron, o filme também nos ajuda a continuar em uma luta que já mostra resultados semelhantes aos de Jared. Filmes como este precisam continuar a repercutir e sensibilizar pessoas ao revelar um pouco mais da realidade LGBTQ+, que parece ser secundarizada até por várias alas do campo progressista em momentos de crise econômica, como os que o Brasil vive.

Nós da comunidade LGBTQ+ precisamos atualmente continuar gritando que nossa pauta é literalmente caso de vida ou morte,  utilizando dos meios de expressão de forma didática como Boy Erased, louvavelmente, se utiliza do cinema. Para a população, principalmente em um momento em que as ideias ligadas aos direitos humanos são tão deturpadas, esse elemento é fundamental e acredito ser o grande feito da obra de Edgerton.

Por: Esdras Alves

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