O filme, que causou polêmica ao não ser lançado nos cinemas brasileiros no início de 2019, ano este, marcado pela posse de um governo conservador e estreitamente ligado com a bancada religiosa, deixou várias dúvidas na comunidade LGBTQ+ sobre o que havia por trás dessa desistência. Entretanto, em resposta ao site B9, a Universal Pictures comunicou através de sua assessoria que o cancelamento se deu por questão única e exclusivamente financeira, decorrente do baixo arrecadamento de bilheterias nos EUA. Após a discussão ter reverberado nas redes sociais, a empresa anunciou posteriormente o lançamento do filme no país em DVD, como uma resposta ao público. O lançamento do filme em home video ocorreu no último dia 17.
“Boy
Erased: Uma Verdade Anulada” é baseado no livro homônimo, escrito por Garrard
Conley, que utiliza um pseudônimo para relatar o que passou ao entrar em uma
terapia religiosa que pretendia reverter a sua homossexualidade. O diretor,
Joel Edgerton, intercala a terapia com os momentos que a precederam e levaram o
jovem Jared Eamons (Lucas Hedges) a assumir sua sexualidade em casa. Para isso,
Jared teve de enfrentar seu núcleo familiar extremamente religioso e
conservador. Seu pai, Marshall Conley (Russel Crowe), é pastor em sua igreja e
foi inicialmente apoiado pela sua esposa, Nancy Conley (Nicole Kidman), ao
decidir levar o filho à terapia “Love in Action”, a qual descobriu consultando
outros servos ministeriais. É apenas após várias reclamações de Jared que sua
mãe se opõe à terapia e percebe o dano que causou ao seu filho
por colocá-lo naquele espaço. Por fim,
Jared deixa a terapia e escreve sobre o que passou através de um artigo para o
Times e um livro.
Descrição para cegos: No primeiro plano estão Nancy e Marshall, lado a lado, aparentemente contentes ao assistir um culto e ao fundo está Jared com rosto sério e ar sombrio. |
O momento de autodescoberta de LGBTs com raízes na vida cristã é o foco
do filme. O processo de autodescoberta por si só sempre traz uma natural
insegurança frente à construção do homossexual no âmbito social como um todo,
mas o recorte do grupo que frequenta os espaços de pregação que legitimam tais
falas é único e acumula desafios particulares.
De
antemão, gostaria de dizer que, com isso, não falo que todos os espaços
cristãos são efetivamente homofóbicos. A comunidade LGBTQ+ já pode contar com
locais de pregação e culto tidos como LGBTQ+ friendly em várias partes do mundo, inclusive, no Brasil. Tampouco
digo que a LGBTfobia se restringe a espaços de culto cristão, visto que outras
grandes religiões possuem líderes homofóbicos e transfóbicos.
Entretanto,
o que não pode ser omitido é que atualmente esses cultos cristãos e
intolerantes não estão nem ao menos próximos de terem sido extintos,
principalmente aqui no Brasil, tendo em vista o rumo político que o país e a
própria igreja evangélica vivem, concomitantemente, desde que se aliaram em um
projeto de retrocesso dos direitos humanos. Dito isso, falarei aqui apenas
sobre o recorte anteriormente mencionado de LGB’s que frequentam os numerosos
espaços homofóbicos cristãos. A discussão da transfobia em ambientes
religiosos, apesar de riquíssima, não é explorada no filme.
Esses
espaços de culto usam a religião para afirmar a homossexualidade como algo
moralmente desviante e, portanto, contemplam a homofobia como parte fundamental
de seu conjunto de condutas necessárias para a salvação espiritual no pós-vida.
Assim, a homossexualidade acaba sendo de fato vista lado a lado à atos ilícitos
e criminosos como o uso de drogas proibidas, roubos ou até homicídios.
Aqueles
LGBs que crescem nesses espaços, ao mesmo tempo em que desenvolvem desejos
homossexuais tendem a encarar internamente o que lhes foi postulado enquanto
conduta desviante como um defeito pessoal incompreensivelmente indissolúvel. É
neste dilema que se encontra o jovem Jared Eamons de 19 anos, que incialmente
se esforça em abnegar seus desejos em troca de uma aceitação, anterior à
familiar, uma aceitação interna e complexa de ser alcançada ao se alimentar o
repúdio à toda a comunidade LGBTQ+ como princípio moral no espaço cristão.
O
filme retrata esse momento de forma justa construindo um protagonista
introspectivo e quase meditativo. Jared fala pouco e nitidamente não possui
naturalidade na fala nem no comportamento. Seus gestos e expressões são
comedidas e muitas vezes soam falsas.
Descrição para cegos: Jared segura as grades que limitam o espaço da "terapia", enquanto observa fixamente o exterior. |
Ao
trazer a personagem quase como que aprisionada, o filme escrutina as barras de
sua cela explorando os métodos de construção do comportamento sexual, tanto
masculino quanto feminino, elencados pela terapia como passos básicos e
iniciais no processo de reversão da homossexualidade. É nítido que ao tentar
fingir um comportamento mais grosseiro e ligado ao conceito errôneo e popular
de masculinidade, Jared se sente desconfortável.
“Fake
it ‘til you make it” é o lema repetido em momentos dessa terapia na intenção de
forçar um comportamento que nitidamente não pertence aquelas pessoas.
Infelizmente, esse lema ecoa para muito além dos muros das terapias de
“cura-gay” em uma sociedade onde muitas vezes LGBTQ+s são indicados a serem o
que são de modo escondido, para que sejam merecedores da dignidade, a qual em realidade,
é inerente a existência humana.
Descrição para cegos: Jared e Nancy estão sentados à cama. Jared está cabisbaixo e sua mãe o observa seriamente, com olhar preocupado, enquanto segura sua mão. |
A
aceitação familiar é discutida de modo mais aberto e óbvio, mas ainda sim muito
interessante. Visualizar a série de ameaças que estão ligadas a esse tipo de
aceitação me parece a melhor abordagem que o filme possui ao denunciar momentos
em que o amor familiar é sugerido como moeda de troca para se obter a
heterossexualidade do filho.
O
papel da família, tanto no momento da autodescoberta quanto em sua revelação ao
mundo, é extremamente influente no porvir da vida de cada LGBTQ+ e isso pode
ser resgatado no filme através não só da libertação que Jared aparenta ao ser
apoiado por sua mãe.
Histórias
paralelas a sua no “Love in Action”, também mostram o outro lado da moeda.
Dentre elas, a de Cameron (Britton Sear) é a mais marcante. O jovem é agredido
fisicamente com bíblias e tapas enquanto é colocado em uma situação de
humilhação pública, tanto pelos funcionários da terapia, quanto por seus
familiares, no intuito de que desistisse de sua condição sexual. Até mesmo crianças são estimuladas a
agredi-lo. Por fim, algum tempo depois Cameron comete suicídio.
Apesar
de tratar uma dura realidade ao contar experiências tão recentes e atuais como
a de Cameron, o filme também nos ajuda a continuar em uma luta que já mostra
resultados semelhantes aos de Jared. Filmes como este precisam continuar a
repercutir e sensibilizar pessoas ao revelar um pouco mais da realidade LGBTQ+,
que parece ser secundarizada até por várias alas do campo progressista em
momentos de crise econômica, como os que o Brasil vive.
Nós da comunidade LGBTQ+
precisamos atualmente continuar gritando que nossa pauta é literalmente caso de
vida ou morte, utilizando dos meios de
expressão de forma didática como Boy Erased, louvavelmente, se utiliza do
cinema. Para a população, principalmente em um momento em que as ideias ligadas
aos direitos humanos são tão deturpadas, esse elemento é fundamental e acredito
ser o grande feito da obra de Edgerton.
Por: Esdras Alves
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