Zygmunt
Bauman
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O
sexo não é o principal meio de unir os casais. A busca pelos novos prazeres
acontece pela mudança na nova era que permite uma liberação maior nessas
escolhas, onde até as próprias crianças são influenciadas pelos pais. Reportagem
divulgada pelo site Ensaios de Gênero no dia 27 de Julho de
2014 (Aderlon Amorim).
O sexo como tática de
atomização na contemporaneidade
Por Vinícius Siqueira
O
sexo não é só uma atividade instintual, muito menos uma libertação do mundo das
regras. Sexo não é a natureza imperando sobre a cultura, pois ele também é
regido por normas e também tem objetos legitimados. Uma libertação sexual (como
a dos anos 60), portanto, ao pé da letra não poderia existir, mas teria que ser
interpretada como uma mudança das regras que regem a relação dos indivíduos com
o sexo. O que acontece na pós-modernidade (e que tem como marco simbólico o
Maio de 68), segundo Zygmunt Bauman,
é um rearranjo das regras que possibilitam o sexo.
Para
entrar nesta questão, Bauman, em Mal
Estar da Pós-Modernidade (1998), retoma os escritos de Michel Foucault sobre a
sexualidade e vê uma inversão em relação ao tratamento que se dá às crianças.
Pois a sexualidade infantil, pautada na repressão do instinto e que era ao
mesmo tempo natural e proibido (simultaneamente pulsional e patológico, como no
caso da masturbação infantil), só veio a ser objeto das diferentes ciências há
pouco tempo. Isso ocorre porque
somente após o século XVI as crianças passaram a ser entendidas como seres “à
parte” (que precisavam de acompanhamento particular para que um
desenvolvimento linear e progressivo fosse possibilitado).
Obviamente,
o tratamento diferenciado que uma criança deveria receber também demandava uma
nova estruturação da instituição familiar: ela deveria se organizar de maneira
que as etapas do desenvolvimento da criança fossem acompanhadas e vigiadas
pelos pais. Essa mudança deveria se dar em aspectos jurídicos e materiais,
digo, tanto a própria estrutura material da casa deveria se modificar para que
alguns espaços fossem dedicados às crianças e outros fossem terminantemente
proibidos, como os pais deveriam ter um papel diferente: eles seriam os agentes
de vigilância, que garantiriam o pleno desabrochar da criança para que esta se
tornasse um adulto saudável.
Entretanto,
o que se percebeu foi uma adesão a esses moldes por famílias ricas, ao passo
que as classes pobres continuavam com estruturas que não evitavam a surpresa de
um filho, de repente, flagrar os pais tendo relações sexuais (BAUMAN, 1998, p.
179).
Assim,
a função dos pais passou a ter mais importância dentro do ambiente familiar: se
antes da reorganização da instituição familiar ambos passavam mais tempo longe
de casa, em seus empregos, agora seria necessário manter alguém no centro
familiar para dar a atenção devida à criança. Isso aconteceu espontaneamente, mas
foi necessária intensa propaganda e legislação que corroborasse com essa tese.
Paralelamente, o dito “vício” da masturbação infantil foi dado como um fardo
moral para os pais. Segundo Bauman (1998, p. 181-182), “o tipo de poder de supervisão posto em prática e continuamente
revigorado pelo pânico que cercava o fenômeno da masturbação infantil trazia a
ressonância da tendência geral de poder panóptico. […] O sexo era mais
apropriado a essa finalidade do que qualquer outro aspecto do corpo e da alma
humana; natural, ainda eriçado a tentações inaturais, iniludível ainda que
cheio de perigos e acima de tudo onipresente e partilhado por todos os seres
humanos, o sexo era como que feito sob medida para o poder total e que em tudo
penetrasse”. Essa seria a “primeira revolução sexual”.
Entretanto, uma “segunda revolução sexual” causou a
quebra de tudo que a primeira revolução teria construído. O lar familiar deixou
de ser o local rígido, por excelência, de marcação do poder no corpo de seus
integrantes. Esta segunda revolução ocorreu “em alguma fase do meio deste século [no
caso, o século XX]” e “o correlato cultural deste processo é o descascar do envolvimento
romântico do amor erótico e que desnuda a substância sexual”,
explica o autor (BAUMAN, 1998, p. 183).
“Como
era na primeira revolução sexual, as transformações atuais não são uma aventura
histórica que acontece só ao sexo, mas parte integrante de uma mudança social
muito mais ampla e completa […] [que envolve] um processo de desregulamentação
e privatização do controle, da organização do espaço e dos problemas de
identidade”, explica Bauman (1998, p. 183). As mudanças em
relação ao sexo são parte de mudanças maiores em toda a sociedade. São parte,
em suma, da liquefação das relações sociais e da categoria do consumo como
determinante na vida em sociedade.
As mudanças da segunda revolução são o inverso das
mudanças da primeira: ao invés de mais controle (com a instituição do
panoptismo), agora há desregulamentação (com a instituição do consumo como base
para as relações); ao invés de rigidez da família e barreiras para a
concretização do ato sexual, agora há um controle próprio e individual sobre o
sexo, que permite “desmistificar” o seu componente romântico.
O
sexo não é mais parte do processo de “construção de estruturas sociais
duráveis”, diz o autor, mas é parte do processo de atomização da vida. O sexo
faz parte da lógica de “acumular sensações”, ou, em outras palavras, quando a
qualidade não é garantida, apela-se para a quantidade. O sexo é um elemento de
individualização, posto que é, ao mesmo tempo, aquilo que impede de se firmar
laços fortes (por sua “desmistificação”) e aquilo que obriga os sujeitos
pós-modernos a o praticarem como sinal de liberdade e como fonte de sensações a
se acumularem.
Até
mesmo em relação às crianças o papel do sexo mudou. Se na
era do panoptismo as crianças eram vigiadas por serem portadas de uma natureza propícia ao sexo, se eram tratadas, dessa forma, como
sujeitos sexuais, na pós-modernidade elas são tratadas como objetos sexuais.
Desta vez se deve vigiar os pais, não mais os filhos. Agora, os adultos são
compulsoriamente culpados por um desejo sexual que sentiriam naturalmente pelas
crianças e que deve ser constantemente vigiado por eles mesmo para que não se
expresse.
Há
uma taxa cada vez maior de denúncias e processos em que pais são acusados de
abusarem de seus próprios filhos (normalmente mais pais do que mães). “A ternura dos pais perdeu sua inocência. Fora levada a público a
consciência de que as crianças são sempre e em toda parte objetos sexuais, de
que há um fundo sexual potencialmente explosivo em qualquer ato de amor dos
pais, de que toda carícia tem seu aspecto erótico e em todo gesto de amor pode
esconder-se um assédio sexual”, explica o sociólogo (BAUMAN, 1998,
p. 187).
Citando Suzanne Moore, Bauman (1998, p.
188) acrescenta que “a palavra abuso, agora, é tão
exageradamente empregada que quase toda situação pode ser imaginada como
abusiva”. Assim, do mesmo jeito como os pais tratavam seus filhos de
forma inofensiva, agora são consideradas como potenciais fontes de abuso
sexual. Uma situação de ambivalência se revela e nessas situações, a melhor
coisa a fazer é passar reto. Como passar reto? Deixando de participar deste
tipo de relacionamento, deixando de tentar se aproximar do filho (ou de
crianças em geral),"no discurso dos nossos dias, a criança aparece como
o objeto, em vez de sujeito, do desejo sexual. Se o lançamento da criança no
molde do sujeito sexual justificava a proteção compreensiva e íntima dos pais,
a criança como objeto sexual requer reticência, distância e reserva emocional
dos pais. O primeiro fato serviu ao fortalecimento (alguns diriam:
estreitamento) dos laços familiares […] o segundo serve ao enfraquecimento dos
laços, uma condição importante da “monadização” do futuro colecionador de
sensações de consumidor de impressões."
A transformação que ocorre no corpo das crianças é
nítida: agora, ao invés de casos de masturbação infantil serem vistos (pelo
discurso contemporâneo) como fruto do interesse das crianças por seus órgãos
genitais, da impulsividade natural em relação ao prazer que seus corpos podem
proporcionar, são interpretados como produto do desejo sexual de
seus pais (ou de adultos em geral) (BAUMAN, 1998, p. 189).
Agora, a sexualidade infantil é interpretada como resultado do abuso a que a
criança seria submetida.
Vinícius Siqueira é pós-graduado em sociopsicologia, morador do
ABC Paulista e editor do site Colunas Tortas.
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